PEC das Drogas: um retrato do momento do Brasil

Proposta elaborada pelo presidente do Senado, e que vai a voto esta semana, erra a mão na área jurídica, nas relações institucionais e na política para psicoativos. País vai na contramão de boa parte do mundo. Há alternativas muito melhores

STF não discute a legalização da maconha, mas sim descriminalizar o porte para uso pessoal ( Elsa Olofsson/Flickr)
Supremo não discute a legalização da maconha, mas sim descriminalizar o porte para uso pessoal ( Elsa Olofsson/Flickr)
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O Senado pretende votar em primeiro turno ainda nesta semana a PEC 45/2023, apelidada de PEC das Drogas. Aprovada por ampla maioria na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), a proposta foi apresentada pelo presidente da casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), e é mais um episódio do avanço obscurantista promovido pelo Legislativo brasileiro, cuja pauta parece se tornar ainda mais retrógrada em um ano de eleições municipais. E é também mais um capítulo do embate que envolve dois dos três poderes da República.

A PEC é uma reação ao julgamento, ainda em andamento no Supremo Tribunal Federal (STF), do Recurso Extraordinário (RE) 635659, interposto pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo. A ação propõe reverter a condenação de uma pessoa que foi flagrada com três gramas de maconha dentro de uma unidade prisional. A Defensoria alega que o artigo 28 da Lei de Drogas, que fundamentou a sentença, é inconstitucional, já que afronta o artigo 5º da Constituição, que em seu inciso X declara a inviolabilidade da intimidade e da vida privada.

Na peça inicial, protocolada em 2011, os autores invocavam o direito comparado para fazer um paralelo com um país vizinho. “A Suprema Corte Argentina declarou recentemente a inconstitucionalidade da incriminação do porte de drogas para uso próprio em razão da impossibilidade da intervenção estatal no âmbito privado dos cidadãos”, diz o texto do RE. Segundo a Defensoria, o artigo 28, ao incriminar “a conduta de portar drogas para uso próprio extrapolou seu poder, ferindo preceitos constitucionais que lhe condicionam”.

Só em 2015 teve início o julgamento, suspenso atualmente por um pedido de vista do ministro Dias Toffoli. O relator, ministro Gilmar Mendes, primeiramente votou para descriminalizar o porte de qualquer tipo de droga para consumo próprio, mas, depois dos votos de colegas que restringiram a descriminalização apenas à maconha, ele reajustou seu voto neste sentido, endossando ainda a necessidade de fixação de parâmetros para diferenciar a quantidade que caracterizaria tráfico e consumo próprio.

Até agora, são cinco votos a favor da descriminalização do porte e do cultivo de maconha para uso pessoal e três contrários, divergência aberta pelo ministro Alexandre Zanin. Sobre este voto, aliás, os argumentos expostos na leitura expressaram um senso comum que não deveria ser adotado em decisões importantes, como destacado aqui.

Justificativas

Já no Senado, também não faltou apelo ao senso comum, na justificativa do projeto feita por Pacheco. Em certo trecho, ele aponta que “o motivo desta dupla criminalização (do usuário e do traficante) é que não há tráfico de drogas se não há interessado em adquiri-las”. Por esta lógica singela, a “dupla criminalização” já teria dado conta de acabar com o tráfico a esta altura, quase 18 anos após entrar em vigor.

E ainda que no Brasil não houvesse um único consumidor, o tráfico continuaria, até porque, por sua localização e extensão de fronteiras, boa parte da rota internacional passa por aqui. “O Brasil é um país de trânsito [de drogas], um país de envio, o que, em si, é um problema bastante grande tanto para o Brasil quanto para nós, porque os narcotraficantes são parasitas das infraestruturas que existem entre a América do Sul e da América Latina em geral e Europa”, disse ao jornal Valor Econômico, em agosto de 2023, o analista científico do Centro de Monitoramento Europeu de Drogas e da Dependência das Drogas (EMCDDA na sigla em inglês), Laurent Laniel.

Ainda na justificativa do projeto, Pacheco, explicitando o confronto com a análise de ministros do STF, alega que sua PEC “visa a conferir maior robustez à vontade do constituinte originário”. Mas será que era esse o desejo do constituinte?

O professor titular de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da USP, Virgílio Afonso da Silva, aponta em seu livro Direito Constitucional Brasileiro que o artigo 5º da Constituição garante um genérico “direito de liberdade” que poderia ser entendido por meio de duas interpretações possíveis: uma na qual as liberdades garantidas são tematicamente limitadas, e outra em que se compreende o reconhecimento de uma “liberdade geral de ação”, o que implica dizer que “toda atividade estatal que restrinja, em qualquer âmbito e em qualquer grau, a autonomia dos indivíduos carece de justificação”. Neste último caso, o consumo de drogas seria ilustrativo.

“Embora não haja uma liberdade específica para consumir drogas garantida constitucionalmente, qualquer restrição na autonomia individual para consumi-las depende de uma justificativa robusta”, pontua o jurista em sua obra. “Uma evidência disso é o fato de que seria impensável que o Congresso Nacional proibisse o consumo de cerveja, vinho ou caipirinha no Brasil, sem qualquer justificativa. O fato de o álcool ser uma droga não significa que é possível proibir seu consumo sem que haja uma justificativa constitucional relevante, que passe pelo teste da proporcionalidade.”

Isso não significa, segundo ele, que os indivíduos teriam um direito definitivo de consumir quaisquer drogas, mas que “eventuais restrições a essas ações devem ser justificadas, da mesma foram que ocorre com as restrições a quaisquer outros direitos fundamentais”.

Será que as justificativas hoje apresentadas por Pacheco e pelos senadores que subscrevem sua proposta se sustentam?

A descriminalização no Senado

Não é a primeira vez que o tema da descriminalização é discutido no Senado Federal. Uma das discussões mais recentes veio no debate a respeito do novo Código Penal, conjunto normativo originalmente elaborado em 1940. Em 2011, o então presidente do Senado José Sarney instalou uma comissão formada por 15 juristas elaborar anteprojeto de novo Código, entregue quase oito meses depois.

Não se tratava de uma proposta com viés progressista no seu conjunto, sendo muito criticada pelo teor punitivista ao prever medidas como o endurecimento de penas, maior dificuldade para progressão de regime e a abolição do livramento condicional. Ainda assim, quando foi discutida a sugestão de que o porte de drogas para uso pessoal fosse descriminalizado, não houve discordância relevante sobre a questão.

Matéria à época da Agência Senado apontava que a descriminalização havia sido “aprovada em clima de relativo entendimento”, em vista de um quase consenso do fracasso da política de “guerra às drogas”. A defensora pública Juliana Garcia Belloque, relatora do tema, salientava não ter inovado no assunto, adotando uma regra da legislação de Portugal que já havia descriminalizado àquela altura o porte que configurasse limite para dez dias de consumo. No caso da proposta brasileira, a quantidade para limite de consumo foi reduzida para cinco dias.

O anteprojeto se transformou no PLS 236/2012 e tramita lentamente na Casa, aguardando distribuição na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ). Dentro de um texto que trazia poucos avanços em termos de direito penal, estava lá a descriminalização não só da maconha, como tem julgado hoje o STF, mas das drogas em geral. Como, em um espaço de 12 anos, o Legislativo simplesmente deixa de discutir o tema e faz uma proposta açodada e simplista como a PEC das Drogas?

Pesos e contrapesos

Hoje o Congresso Nacional tem um poder inédito. Em dezembro, o líder do governo no Senado, Jaques Wagner (PT-BA), reclamava que o total de emendas impositivas ao Orçamento da União, cuja execução é obrigatória por parte do Executivo, ficaria em torno de R$ 52 bilhões a R$ 54 bilhões em 2024. Esse tipo de emenda foi criada por meio de PEC em 2015, com um grande esforço feito pelo então presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, um verdadeiro líder de oposição ao governo de Dilma Rousseff. À época, somente emendas individuais podiam ter caráter impositivo, mas outra mudança constitucional, de 2019, ampliou esse poder também para as chamadas emendas de bancada, de autoria coletiva.

Ex-integrante da “tropa de choque” de Cunha, o atual presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL) seguiu a trilha, conseguindo junto ao governo Bolsonaro a instituição do chamado “orçamento secreto”, ampliando o domínio legislativo sobre recursos públicos, sem transparência. Mesmo depois de o STF ter considerado o esquema baseado nas emendas de relator ilegal, a utilização de emendas impositivas e das emendas de comissão continuaram o cerco ao Executivo.

Ainda que um governo eleito consiga ter nas presidências das duas Casas políticos aliados no futuro, o poder de barganha e o equilíbrio entre os dois Poderes já mudou. Empoderados, os representantes do Legislativo não querem ter diante de si o contrapeso do Judiciário. Em novembro de 2023, por exemplo, o Senado aprovou uma PEC que veda a concessão de decisão que seja tomada por único ministro ou desembargador para suspender a eficácia de uma lei, a decisão monocrática.

Tratava-se, como agora, de mais uma demonstração de força diante do que parlamentares julgam ser “interferência” de outro Poder. O próprio Rodrigo Pacheco, aliás, só instalou a CPI da Covid por decisão de Luís Roberto Barroso, já que o presidente da Casa, mesmo com a proposta de instauração da comissão tendo conquistado o apoio de um terço dos senadores, estabelecido fato determinado e prazo de trabalho, não havia autorizado a abertura da comissão.

Obviamente os limites de cada um devem ser observados e debatidos, mas forçar conflitos não parece ser uma saída institucional adequada. Ainda mais pelo fato de os dispositivos de emendas constitucionais também estarem sujeitos à análise do Supremo e poderem ser considerados inconstitucionais, como já aconteceu em outras ocasiões. E muitos juristas avaliam que a PEC afronta a Constituição. Ou seja, a briga pode escalar. Talvez este seja o objetivo.

Na contramão

Além de a PEC das Drogas representar uma postura de enfrentamento do Legislativo, tanto a proposta quanto a disposição para o conflito não seriam possíveis sem a mobilização da extrema direita, que mira o Judiciário, em especial o STF, há tempos, e também utiliza a pauta relacionada a temas morais como prioritária. Parlamentares tidos como “moderados” não se acanham em abraçar propostas reacionárias por conta de puro oportunismo político-eleitoral, algo que seria mais difícil em tempos recentes. Os extremistas só conseguem adquirir força por conta da omissão e da adesão dos órfãos (e algozes) do “centro democrático”, que desapareceu do cenário político.

Isso justificaria em parte que um texto tão regressivo fosse à votação de forma tão leviana. Em tempos de negacionismo, a proposta ignora todas as contribuições do campo das ciências criminais e insiste na lógica do encarceramento, o que equivale a aumentar a dose de um suposto remédio cujos “efeitos colaterais” são mais danosos do que os efeitos daquilo que pretende curar.

A criminalização muitas vezes afasta o usuário do sistema de saúde, resultando em uma subnotificação que impede a elaboração de estratégias e políticas públicas que possam abordar a questão de forma mais eficiente. Também não existem evidências científicas de um argumento muito utilizado pelos defensores da criminalização, de que não penalizar o usuário aumentaria o uso de substâncias ilegais.

Como já citado neste texto, um estudo publicado na revista Economic Inquiry, em 2019, apontou que nos estados que legalizaram o uso da maconha nos Estados Unidos, houve uma redução de pelo menos 20% nas mortes ligadas a overdoses de opioides. “Os estados onde a maconha foi legalizada não são tão negativamente afetados como os que não a legalizaram”, pontuou um dos autores, o economista da Universidade de Massachusetts Amherst, Nathan Chan. A legalização do uso recreativo da maconha nos Estados Unidos, país muito citado por extremistas de direita como exemplo, já é uma realidade para a maior parte da população, lembrando que não é a legalização que se discute no Supremo, mas sim descriminalizar o porte para uso pessoal.

Assim, a proposição do Senado caminha na contramão de boa parte do mundo. Enquanto o Brasil se prepara para votar a PEC das Drogas, a Alemanha, desde 1° de abril, permite que maiores de 18 anos possam portar até 25 gramas de maconha, com permissão de cultivar até três plantas, desde que destinadas ao uso pessoal, em casa. O Deutsche Welle destaca que “em Portugal, Espanha, Suíça, República Tcheca e Bélgica e principalmente na Holanda, há muito tempo existem regulamentos que não criminalizam mais a posse e o uso de pequenas quantidades”.

Além do Uruguai, que legalizou a maconha, criando um mercado regulado para uso recreativo e medicinal da erva em 2013, a Colômbia descriminalizou o uso e o porte da cannabis em 1994. Argentina e Chile também não criminalizam o usuário. Outro país que é referência para boa parte da extrema direita brasileira, Israel, é “o maior mercado de cannabis medicinal per capita do mundo” e adota uma descriminalização parcial para o porte caracterizado como de uso pessoal.

É fundamental que o Brasil olhe para as experiências internacionais e promova um debate sério a respeito de uma questão que influencia a vida das pessoas de diferentes formas, desde aqueles que vão para o sistema prisional de forma desnecessária, passando pelas pessoas que poderiam ter acesso a tratamentos baseados na erva já comprovados cientificamente, incluindo a utilização de recursos públicos na sustentação de uma estrutura proibicionista draconiana que já demonstrou ser ineficaz. Já houve um ministro de Estado dizendo que não se importaria que o país fosse considerado um “pária internacional”. Infelizmente, em termos de política de drogas, o Brasil pode acelerar o passo em direção a esse destino.

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